Nacionalismos. Racismo e xenofobia na Europa, contra migrantes e ciganos, alimentados por forças marginais que os utilizam para aumentar o consenso e manter o poder. Por Marco Bascetta, Il Manifesto.
No meio de uma sucessão de fenómenos de barbarização, a Europa põe-se em marcha para a cimeira de 28 de junho [Conselho Europeu que se ocupará “da migração, da segurança e da defesa, e dos assuntos económicos e financeiros”, N do T]. Basta falar com alguém ao acaso para se ter uma ideia de como o ar se tornou venenoso no Velho Continente. O ministro da Justiça britânico propõe enfrentar o êxodo pós-Brexit dos trabalhadores comunitários substituindo-os com presos nacionais. A Dinamarca, que há algum tempo está na vanguarda quanto a vexames a migrantes, dispõe-se a proibir a prática da circuncisão.
A Áustria transforma a atmosfera angustiante de O Deserto dos Tártaros1 num carnaval: pomposos exercícios militares na fronteira para rechaçar uma imaginária invasão de migrantes. O ministro do Interior alemão, Horst Seehofer (CSU), durante a campanha eleitoral na sua Baviera natal, impõe de facto a Angela Merkel a blindagem das fronteiras alemãs, e esse “teto” para os requerentes de asilo que a Chancelaria sempre considerou incompatível com a natureza e os valores da Bundesrepublik2.
Um dos efeitos perversos do nacionalismo crescente em boa parte da Europa é, precisamente, que os ministros do Interior passem a encarregar-se da política externa
Salvini fecha os portos e abre a boca para proferir repetidamente ameaças e obscenidades. Esforçam-se todos para tornar o ambiente dos migrantes o mais nauseabundo possível. Um dos efeitos perversos do nacionalismo crescente em boa parte da Europa é, precisamente, que os ministros do Interior passem a encarregar-se da política externa. Estes monopolizam o debate sobre os Tratados, negoceiam com países não europeus (Líbia e Turquia em primeiro lugar), condicionam as relações entre países europeus, fragmentando-os em supostos eixos ou alianças, e impõem as suas próprias fantasias geopolíticas.
Esta é uma consequência direta do “primado” conferido ao interesse nacional, entendido sobretudo como ecrã ou proteção perante a comunidade política supranacional, e dos “outros” em geral. Tratando-se de ministros que controlam as forças da ordem, o cheiro a polícia é bastante intenso. A ideia nacional é talvez o mais clássico dos universalismos aos quais se dá a volta para transformá-los no seu contrário, neste caso, o conflito latente ou declarado entre particularidades pouco dispostas à mediação.
Além disso, a coligação ideológica entre nacionalismos encerra sempre a larva da guerra.
A União Europeia sucumbe hoje ao fogo cruzado entre o nacionalismo norte-americano de Donald Trump e os “primados nacionais” que se alojam no seu seio
A União Europeia sucumbe hoje ao fogo cruzado entre o nacionalismo norte-americano de Donald Trump e os “primados nacionais” que se alojam no seu seio, os quais, começando pelo Leste, não se limitam à rejeição dos migrantes, mas viajam para ideias de sociedade muito diferentes às que temos conhecido na Europa ocidental desde o último pós-guerra.
É necessário concentrarmo-nos sobre a natureza desta barbárie de efeitos imprevisíveis, pelo menos para entender em que contexto nos encontramos. O discurso xenófobo, e ainda mais o abertamente racista, tem algo de indomável e incontrolável. Estes discursos puseram em movimento forças políticas, marginais na maior parte dos casos, que viram, na desorientação difusa gerada pelas transformações da produção e no ataque aos salários e às condições de vida que as acompanhava, a possibilidade de canalizar o descontentamento numa direcção nacionalista e autoritária que lhes permita conquistar uma posição central.
Neste tipo de contexto, os migrantes têm sido classicamente o alvo mais à mão. Assim, numa escalada de violência não só verbal, foram-se gerando e alimentando diversas pulsões xenófobas. Não porque existisse por trás algum tipo de filosofia racial ou alguma conceção cultural identitária, mas porque se tratava da via mais simples para adquirir consenso e poder. Este princípio é aplicável a um político de longa trajetória, agora em decadência, como Horst Seehofer, assim como a aventureiros do estilo de Salvini ou do seu homólogo austríaco, Herbert Kickl. Três ministros do Interior que ambicionam o controle dos respetivos países, o qual já exercem em parte.
Mas uma vez despertado o cão raivoso do racismo, será necessário continuar a nutrir a sua fome inextinguível, arriscando-se a verem-se arrastados com ele numa rampa a que até a direita xenófoba preferiria não recorrer. Nessa situação, a discriminação–perseguição-expulsão dos migrantes converte-se numa condição inevitável do consenso. Qualquer limitação a esse respeito geraria acusações de traição. Assim, os novos “caudilhos” ver-se-ão obrigados a aumentar o seu cinismo, a sua brutalidade, a dar soluções rápidas e encenações cada vez mais grotescas. E ainda em maior medida quando as populações nacionais virem como as suas próprias condições materiais não mudam para melhor.
Uma vez despertado o cão raivoso do racismo, será necessário continuar a nutri-lo, arriscando-se a verem-se arrastados com ele numa rampa a que até a direita xenófoba preferiria não recorrer
Por outro lado, também a esquerda considerou que era necessário recuperar consensos através da intolerância para os migrantes, ainda que com tons mais hipócritas e argumentos mais complicados. Com a ideia, desmentida por qualquer experiência histórica, de que bloqueando os fluxos migratórios o racismo e a xenofobia desapareceriam de forma natural e de que assim, os “italianos”, vendo-se de novo no centro da atenção e dos cuidados do seu próprio governo, mostrariam o seu reconhecimento. Tendo ainda de autoconvencer-se de que um importante momento histórico não era mais que uma “emergência”, que podia resolver-se sentando-se numa mesa com os “presidentes de câmara do sul da Líbia”, como o ex-ministro do Interior do Partido democrático, Marco Minniti, chamou com involuntário sentido de humor aos bandos de depredadores e contrabandistas que controlam aquelas areias.
De tudo isto só se pode fazer uma previsão ameaçadora. Explicando-a com uma fórmula lógica, poder-se-ia dizer que a Europa é cada vez mais refém dos estados nacionais, dos seus vetos, da demagogia que neles impera. E os estados nacionais são, por sua vez, cada vez mais reféns e prisioneiros das suas direitas radicalizadas, dedicadas a impor um “nós” no qual afundam as contradições sociais e consolidam essa ordem hierárquica que se encontra na natureza de qualquer nacionalismo.
Artigo de Marco Bascetta, publicado em Il Manifesto, traduzido para espanhol por Pedro Castrillo para El Salto e para português por Carlos Santos para esquerda.net
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